Estamos nos preparando para a maior festa da humanidade, a Páscoa. Para quem crê, a Páscoa é a libertação total do ser humano das mãos da morte eterna. Realmente, com a vitória de Cristo sobre o maior inimigo da Vida – a morte – os homens e mulheres de todos os tempos ganham a graça de um Projeto de Vida Eterna. A escuridão do sofrimento não poderá jamais apagar a luminosidade da esperança, que em Jesus Cristo, O vivente somos definitivamente resgatados.

Durante toda a história pessoal de cada homem e mulher percorremos uma estrada. Seja ela física – para chegar em algum lugar: trabalho, escola, igreja, em casa… – Seja psicológica – da infância até à idade adulta – Ou ainda aquela percorrida através de um tempo “kairótico”, chamado também de sequela Christi, que é a ritualização dos degraus de maturidade na relação com Deus: aqui podemos considerar nossa vida sacramental desde a apresentação na Igreja passando pelos sacramentos da Iniciação Cristã até o último encontro com o Senhor enquanto seres históricos. Todos estes momentos são realizados através de um caminho, que organizados ou não, durante a nossa existência vão dando sabor e significado aos nossos dias. E todos estes passos nos preparam para um momento mais que especial, o qual desejamos, desde a nossa eternidade: a nossa salvação.

Pois bem, em todos estes caminhos percorridos durante a nossa vida, desde o mais simples realizado exaustivamente todos os dias, até àquele percorrido espiritualmente, em todos eles, sem excluir nenhum, existe a necessidade de paradas, quase como “paradas obrigatórias”, durante as quais vamos descobrindo a necessidade de “reabastecer o tanque e renovar os motores”, afim de que a grande parada final seja uma realidade vivida de modo antecipado. Em cada parada é possível experimentar algo totalmente novo e ressignificar o trajeto já percorrido preparando com carinho o que vem pela frente.

A Quaresma é o caminho de conversão que percorremos até a novidade do Reino. Nesse tempo, ressoa aquele primeiro grito de Jesus: “Convertam-se, porque o Reino de Deus está próximo!”.

Então, é possível viver este tempo favorável de conversão como uma estrada que nos conduz para o horizonte sem ocaso. Todavia, uma estrada que oferece três paradas obrigatórias, e em cada parada um combustível a ser adicionado à alma. Vamos, então, trilhar este caminho de conversão realizando as paradas necessárias.

Quaresma, “estrada” para a Páscoa

A Quaresma é um chamado ao deserto para ouvir a declaração de amor de Deus. Durante este tempo, a Igreja nos convida a considerarmos em nossa oração a necessidade de converter-nos, de redirecionar nossos passos para o Senhor. De fato, um pequeno texto do Missal Romano na Oração sobre as oferendas do primeiro domingo expressa bem essa necessidade de um caminho já iniciado como verdadeiro caminho para a Páscoa: “Fazei, ó Deus, que o nosso coração corresponda a estas oferendas com as quais iniciamos nossa caminhada para a Páscoa”. Desde o primeiro domingo da Quaresma, a liturgia traça decididamente o caráter dos 40 dias que começam na Quarta-Feira de Cinzas. A Quaresma é um compêndio de nossa vida, que é toda ela um constante retorno à casa do nosso Pai. É um caminho para a Páscoa, para a morte e ressurreição do Senhor, que é o centro de gravidade da história do mundo, de cada mulher, de cada homem: um retorno ao Amor eterno.

Neste tempo da Quaresma, a Igreja nos desperta de novo à necessidade de renovar nosso coração e nossas obras, de modo que descubramos, cada vez mais, esta centralidade do mistério pascal: se trata de que nos ponhamos nas mãos de Deus para “progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”, segundo a oração da coleta do primeiro domingo do tempo quaresmal.

Primeira parada: a oração

Orar ou ter vida de oração não significa falar muito ou querer impor nossa vontade a Deus, mas deixar nossa vida nas mãos do Pai que nos ama (cf. Mt 6,7). Deus quer ser adorado em espírito e em verdade (cf. João 4, 23), mostra-nos aqui, pela boca de Seu Filho e enviado, o valor da oração é essencialmente a disposição do coração, em vez das manifestações externas. (Cf. Is. 1, 11).

Verdadeiramente, orar significa entreter um diálogo, isto é, um relacionamento real, com a nossa Origem, com Deus que nos ama e nos enviou o Seu Filho como Salvador. Porém, para escutar, contemplar, e louvar ao Senhor, é preciso cultivar um espírito de humildade e gratidão. É preciso cultivar a oração como um itinerário privilegiado de escuta e comunhão, quando rezamos falamos com Deus, porém, esta escuta de Deus possibilita um horizonte bem maior, o encontro conosco mesmo e com os outros.

Neste tempo, talvez mais do que em outros é urgente uma oração mais abundante, mais demorada, mais verdadeira. Em suma, voltar para Deus através da conversão da vida e receber dele as luzes que motivam nosso caminho de vida. Neste sentido, a oração é como a respiração da alma. Se não há oração, não há vida de relacionamento com Deus; e por essa razão a Igreja, como boa mãe, nos lembra e insiste que voltemos a Deus, intensifiquemos nosso relacionamento com Ele, revisemos nossa oração.

O tempo propicia também, na oração, a leitura da Palavra de Deus, uma participação mais assídua nos sacramentos da penitência e da eucaristia, bem como a oração do terço como oração contemplativa desde o coração de Maria, que contempla os mistérios da vida de Cristo.

O modelo de oração para este tempo é o modelo de oração do próprio Cristo, quando entra no deserto humano e lá, por uma vida de constante oração e escuta vai traçando o caminho da vitória da Vida. Esta oração, não somente neste tempo de quaresma, mas em todos os momentos nos alimenta na caminhada rumo ao túmulo vazio.

Segunda parada: o jejum

O jejum e a abstinência são formas de penitência interior, conceito que o Catecismo da Igreja Católica define como “uma reorientação radical de toda a vida, um retorno, uma conversão para Deus de todo nosso coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal e repugnância às más obras que cometemos. Ao mesmo tempo, é o desejo e a resolução de mudar de vida com a esperança da misericórdia divina e a confiança na ajuda de sua graça. Esta conversão do coração vem acompanhada de uma dor e de uma tristeza salutares chamadas pelos Padres de “animi cruciatus (aflição do espírito”, “compunctio cordis (arrependimento do coração)” (§ 1431).

Nesse caminho penitencial, o significado mais simples, porém, necessário  do jejum é “se privar de algo para ser mais ágil no trato com Deus e no serviço ao próximo”. Há muitas coisas que vão se acumulando e nos impedem de seguir o caminho mais leve. Por isso, aderir ao jejum de comida só tem significado maior quando é para compartilhar com aqueles que não têm nem mesmo o essencial para alimentar o corpo. Afinal de contas, é fácil jejuar de alimentos quando sabemos que a nossa despensa está “abarrotada” feito um grande  depósito; é também preciso Jejum de comodidades, para não se deixar levar pela preguiça e acídia; jejum de descanso e diversões para que o espírito não relaxe.

Ainda que o jejum esteja na moda para outros fins não religiosos, como esportes ou saúde, a Igreja nos manda jejuar, com um pequeno símbolo de não comer, mas com a intenção de nos convidar à privação de tantas coisas que nos estorvam. Coisas que são boas e legítimas, mas que tornam a corrida pesada, e a estrada penosa. Ou seja, caminhar com a bagagem leve para percorrer o caminho do amor a Deus e ao próximo.

Vivemos num tempo de excessos, não só alimentares por parte de alguns e também de negação do básico para uma grande porção de pessoas pelo mundo afora. Os excessos devem ser evitados não somente como forma de negação de uso pessoal, mas também e de modo especial como uma obrigação à partilha. Nos acostumamos a adquirir muitas coisas e, por isso mesmo corremos o risco de uma vida vivida da mediocridade do egoísmo, sem levar em consideração a vivência de valores fundamentais como a partilha.

Proponho, sobre este assunto, uma consulta ao catecismo da Igreja para saber o que realmente se propõe com o jejum. Vale a pena conferir os cânones 1249 a 1253, até mesmo como aprendizado para este tempo e para a vida toda.

Terceira parada: a esmola

Com este conceito, entendemos toda forma de caridade e de solidariedade fraterna. Somos reconhecidos como cristãos através do amor a Deus e ao próximo; mas a tentação do egoísmo e do fechamento diante das necessidades do próximo é grande! A Quaresma nos estimula na prática das obras de misericórdia; sobre elas deveremos, um dia, responder diante de Deus: “eu tive fome… tive sede… estava sem roupa, sem casa, na prisão, doente…” (cf Mt 25).

É também durante este tempo que a Campanha da Fraternidade, cada ano, nos propõe um aspecto da vivência da caridade e da solidariedade fraterna. Neste ano, o tema é Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34) –, sendo assim, somos convidados a refletir sobre o significado mais profundo da vida em suas diversas dimensões: pessoal, comunitária, social e ecológica.

Estes dias lendo uma bela entrevista com o padre secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, Pe. Bruno-Marie Duffé, ele falava do bonito significado da esmola: “Aquilo que dá sentido à esmola é o olhar que oferecemos, antes da ajuda material que podemos dar a quem precisa. É o coração a se oferecer e que se oferece; o apoio material é a expressão de uma humanidade que se doa com alegria. A “consciência tranquila” consiste em doar sem colocar na nossa doação aquele amor que alivia e une. A “consciência tranquila” está voltada para si mesma: o amor autêntico se satisfaz ao cruzar o olhar com o outro.”

A solidariedade é, de fato, a experiência de ser tocados por aquilo que vive o outro: a sua história, o seu sofrimento e a sua esperança. Podemos, assim dizer, que a esmola é um compartilhar e que cada um oferece ao outro, através do seu olhar, o seu coração e a sua mão aberta, de viver e de continuar o caminho. O “pouco” que oferecemos vira sinal de fraternidade, inspirada pelo amor superabundante de Deus Pai. A solidariedade vira um estilo de vida quando aceitamos encontrar e nos aproximar de quem não conhecemos. A esmola, o compartilhar, o cuidado a quem sofre, mas também o empenho político e as relações nas redes sociais: são tantos os âmbitos em que é possível viver a caridade durante a Quaresma.

Finalmente chegamos ao final da estrada proposta neste tempo quaresmal. Chegar ao túmulo tendo passado por paradas obrigatórias para organizar, alimentar e fortalecer o espírito, e assim perceber que as paradas obrigatórias assumidas, durante este tempo, nos deram os olhos e o coração de Deus para que encontrássemos o túmulo vazio. Bom caminho de conversão.

Padre Francisco Gecivam Vieira Garcia

Arquidiocese de Maringá

Artigo publicado na Revista Maringá Missão – Março 2020