O ano do laicato, iniciado a partir da festa de Cristo Rei, no ano passado (26 de outubro de 2017), suscitará importantes discussões a respeito da condição e da missão dos fiéis leigos na Igreja e no mundo. A tarefa eclesial de refletir essa temática é de todos os membros da Igreja, e requer um aprofundamento da sua real situação e da sua vocação. Além disso, seria necessário refletir a própria Igreja, enquanto comunidade dos discípulos de Jesus Cristo, na sua real permeabilidade aos leigos e ao tema proposto: seu carisma próprio, sua forma e ver o mundo, de experimentar a fé e de seguir Jesus.

O presente artigo intenta refletir o tema a partir do âmbito litúrgico, pois acredita que a liturgia, conforme ensina o Concílio Vaticano II, em sua Constituição Conciliar Sacrossanctum Concilium (SC), é a fonte da genuína espiritualidade cristã: “O Sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis” (SC 1); “A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, ‘se opera o furto da nossa Redenção’, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja” (SC2); “deve dar-se a maior atenção a esta plena e ativa participação de todo o povo porque ela é a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão de beber o espírito genuinamente cristão” (SC 14).

O atual contexto litúrgico-pastoral

Não obstante os avanços e conquista no âmbito litúrgico e celebrativo da Igreja, falar em liturgia ainda gera desconforto em alguns ambientes eclesiais: soa como coisa de clérigo, com formalidade e preceito, sugere rigidez e ritualismo: muita regra, coreografia sem graça, gente triste e discursos vazios. O mal-estar se explica pela vivência ainda recente – pouco mais de cinquenta anos – de uma liturgia em latim, moralista, celebrada praticamente por clérigos, que em pouco, ou em nada dizia respeito à vida das pessoas e à vida cristã, senão para reforçar comportamentos morais e estruturas hierárquicas. Em grande linhas, tal era a vivência eclesial da liturgia antes do Concílio. O testemunho de uma amiga religiosa, que vivia em Roma em 1963, quando deu-se a promulgação da Constituição sobre a Liturgia, foi de um generalizado espanto: “Liturgia? Mas por que um documento sobre a liturgia?” a perplexidade se explica porque talvez a vivência da liturgia de até então tinha sido nos moldes pré-conciliares… A mesma religiosa, voltando ao Brasil, redescobria, algumas décadas depois, o sentido e o vigor da liturgia na vida da Igreja e do povo simples com o qual celebrava, com muita participação e vitalidade, o mistério de Cristo.
Contudo, como afirma, A. Grillo, o rito mudou, mas não houve mudança de mentalidade: a liturgia hoje é celebrada com rito reformado, mas ainda com a velha concepção pré-conciliar1. Não raro encontramos celebrações com traços clericalistas e uma acentuada divisão entre clérigos e leigos no espaço, no exercício dos ministérios, na pregação homilética, nas atitudes restritivas que mais e mais impedem a participação e o protagonismo dos leigos nas celebrações. Perdura a concepção hierárquica e excludente na forma de celebrar e também na mentalidade do próprio povo. A celebração não resplandece a Igreja Corpo de Cristo, cabeça e membros, orgânica e dotada de serviços, dons e, sobretudo, assumida pela participação ativa e plena de todo o povoe de Deus.

O dom da Liturgia para a Igreja

A reforma da liturgia impulsionada pela Constituição foi um preciosos dom para o Povo de Deus, um sopro do Espírito que abriu as janelas da Igreja e repousou na comunidade e em cada discípulo seu. A Constituição proclama esse lugar fundamental da liturgia como cume e fonte da vida cristã, da vida eclesial (cf SC 10). Mas as afirmações que erroneamente podem ser tomadas como novidade absoluta o Concílio são, na verdade, por parte dos Padres conciliares e do Movimento Litúrgico que antecedeu e preparou o Concílio, fruto de uma leitura atenta das Escrituras e da Tradição, um reencontro com as fontes da fé. Sobressai para o escopo desse artigo a afirmação da Liturgia como fato eclesial. Retomando Santo Inácio de Antioquia, a Constituição Litúrgica, artigo 41, proclama:

“[…] a principal manifestação da Igreja se faz numa participação perfeita e ativa de todo o povo santo de Deus na mesma celebração litúrgica, especialmente na mesma eucaristia, numa única oração, num só altar a que preside o bispo rodeado pelo seu presbitério e pelos seus ministros”.

A liturgia proclamada pelo Concílio afirma a celebração como lugar natural de todo o povo de Deus: leigos e clérigos. Ser cristão leigo está radicado na experiência celebrativa da fé. Em seu trabalho sobre as origens do cristianismo, J. Taylor afirma categoricamente a respeito do sentido cultual da designação de cristãos aos seguidores de Cristo:

“Se os nomes de Cristo (Ungido) e cristão foram preservados, embora desviados do sentido primitivo, só pode ser porque originalmente eles tinham alcance apreciável, presumivelmente ligado à unção. Além disso, em uma cultura tão sensível a sinais como o judaísmo, precisamos começar a procurar não arranjos inteligentes com versículos, nem sutis alusões bíblicas a um rei-Messias ou a um sacerdote-Messias, mas pontos de referência concretos, isto é, seguir o método que usamos até agora, ritos em vez de acontecimentos ou doutrinas”2.

Esta convicção é que necessita ser continuamente aprofundada: o cristão, o fiel leigo, encontra na liturgia seu lugar de fonte, lugar identitário, a concretude de sua fé, a gênese da vida em Cristo, da sua vocação de discípulo e missionário. É na liturgia que o cristão é iniciado pelo Batismo e Confirmação da vida cristã. É na liturgia que semanalmente ele revisita a Aliança, firmada na entrega pessoa e amorosa de Jesus que propiciou a salvação de todos, ele que ordenou: “façam isto como meu memorial” (cf. 1Cor 11, 24-25). É na liturgia que o fiel encontra a sua escola de oração: seja pela Palavra de Deus e pela eucologia, seja pelos salmos, cântico, hinos e textos patrísticos e da Tradição. É na liturgia que recebem o apoio e a solidariedade do Cristo, ou selam a Aliança matrimonia, em Cristo. Nas situações diversas da existência – trabalho, família, cultura, esporte e lazer, vida profissional, etc – bendizem e suplicam de Deus a bênção para si e para os outros. Quando morrem, os fiéis são acompanhados, em confiante esperança, por meio de cantos, súplicas e orações, ao seio do Pai, pois suas vidas, desde o Batismo, estão escondidas com Cristo em Deus (cf. CL 3,3). É assim que exercem, conforme ensina a Constituição Dogmática Lumen Gentium, sobre o Povo de Deus, o seu Sacerdócio comum3.

Três entraves: provocações necessárias

Os entraves aqui apresentados não devem ser tomados em sentido absoluto, ou ao modo de acusação. São provocações que, por contraste, tentam produzir um efeito pedagógico e reflexivo. Sem referirem-se a uma situação concreta específica, podem dizer respeito a todos que, com coragem, desejarem rever suas posturas e práticas.

– O primeiro entrave é de ordem celebrativa: de um modo geral, os fiéis não encontram nas liturgias um ambiente onde podem fortalecer sua fé. A reforma litúrgica da Igreja ainda não foi devidamente acolhida em sua pujança e em toda sua capacidade de reconduzir a fé ao seu eixo celebrativo, ritual e simbólico. O horizonte preceitual, por parte dos fiéis e, por parte dos padres, o senso do dever no cumprimento de uma agenda, não permitem celebrar, antes esvaziam o caráter celebrativo da liturgia. Reúne-se, mas sem o prazer do encontro fraterno e da mística que seduz para Cristo e produz encantamento pela fé e pela missão. O tempo se transformou num critério de absoluta grandeza e tirania: critério restritivo e contrário à celebração. “É a pós-modernidade” – dizem. “Temos que nos adaptar!” – asseveram; mas os mesmo que se ressentem de quinze minutos a mais, não fazem a mesma queixa dos churrascos, das festas de família, ou dos encontros de barzinhos. Não se trata de um julgamento moral, mas de uma comparação que denuncia: nossas celebrações perderam seu caráter festivo! Celebrar é, em última análise, fazer festa. É vibrar na mesma sintonia com os cantos, os símbolos e orações, é dar tempo ao silencio e à realização prazerosa, pausada e aprofundada dos ritos, é rezar, rasgando diante de Deus o coração e exultando em alegre louvação pelos seus benefícios. A celebração não foi escamoteada apenas pela “falta de tempo”. Foi também substituída pelo gosto do formalismo e pelo enrijecimento legal em vista de uma sacralidade desencarnada que esvazia a força da celebração. Celebrar esconde algo de profético enquanto recorda e ressignifica o passado e os acontecimentos presentes, enquanto proclama a vitalidade da existência e atrai o futuro, gestando sonhos e desejos, expectativa e promessas. A celebração pode devolver a Igreja a si como comunidade e lugar de comunhão e de fraternidade. Na celebração existe a possibilidade do encontro com o cerne da fé que pode nutrir e conferir uma identidade mais próxima do evangelho.

– O segundo entrave é de ordem ideológica: aos clérigos, a liturgia, ao leigos, o culto existencial. Tal divisão depõe contra a unidade da Igreja, obnubila a novidade do cristianismo, aprofunda, com engenhosa sutileza, o fosso entre leigos e clérigos, sedimentando a continuidade de uma liturgia clerical. Nesse horizonte, quando se admite e se assume o conceito “sacerdócio universal”, ou “sacerdócio comum dos fiéis”, ou “sacerdócio batismal”, isso é feito relegando-o para fora da celebração, mantendo o status quo. É preciso visitar o imaginário que reforça essa separação. Ela aparece sob a espessa camada de legitimação hierárquica que se impõe de modo simbólico, na linguagem, nos ritos. É bom recordar que os sinais e ritos são polissêmicos: podem ser expressão autêntica do mistério, mas podem ser expressão ideológica de poder e de sujeição. Só para ilustrar, o que pode significar, em sentido sociológico, a elevação de uma hóstia consagrada por um clérigo, enquanto os fiéis ajoelhados abaixam a cabeça? O rito, que já foi alterado pela reforma litúrgica – o missal pede que se eleve um pouco sobre o altar – e que ainda persiste na maioria das celebrações, tem origem medieval, em profundo ambiente de controvérsias eucarísticas, distante da ceia doméstica pretendida por Jesus e praticada pelas comunidades cristãs primitivas, onde todos comendo o mesmo pão partilhado formam um só corpo (1Cor 10, 17). A ideologia clericalista atinge também grupos de ministérios leigos e ritos que lhes dizem respeito: cantos entoados por grupos que não promovem a participação da assembleia, ministérios leigos que reproduzem esquemas sutis de dominação e poder, sem qualquer disposição para uma compreensão minimamente próxima da reforma preconizada pelo Concílio. Neste corpo cindido, não somente os leigos ficam distanciados da expressão litúrgica da fé. Também os clérigos ficam distanciados do necessário testemunho existencial, quiçá desobrigados…
– O terceiro entrave é da ordem da formação: na grade da maioria das escolas de teologia, dos futuros clérigos e dos leigos, a formação litúrgica ocupa um lugar desconfortável: pequeno e insuficiente para um âmbito que se considera como da maior importância e nucleador de outros conhecimentos – compare-se as horas concedidas às disciplinas bíblicas e sistemáticas; metodologia inadequada, cerebral e avessa à ação ritual, enquanto lugar teológico anterior e fundamental para a fé; doutrina, sem enraizamento pastoral e espiritual, pouco disposto à práxis litúrgica como refontalizador da vida eclesial e da vida de fé e do seguimento de Jesus. Nesse horizonte, os ritos ainda permanecem por trás do véu do Templo, sem se dar conta que a liturgia maior de Deus derramou o seu sangue fora dos muros, entre dois ladrões e fez cindir a rocha que obstruía a passagem da vida nova.

Conclusão

A situação do laicato em relação à liturgia, vista da própria práxis litúrgica atual, requer um esforço sincero e corajoso, amadurecido e disposto a lidar com questões desconfortáveis que já se sentem no âmbito pastoral. Dentre elas, destaca-se o chamado “cisma silencioso”4, que consiste em uma recusa tácita, mas latente e capaz de distanciar da fonte primeira da fé, e da Igreja, aqueles para os quais a Igreja quis renovar a liturgia, a fim de reunir e revigorar a vida cristã, os fiéis leigos.

Referências

1GRILLO, Andrea. Liturugia, exercício do sacerdócio de Cristo, cabeça e membros, na SC e nos demais documentos do Concílio Vaticano II. In: CNBB. Liturgia: exercício do Sacerdócio de Jesus Cristo, cabeça e membros. Brasília: CNBB, 2014. p. 9-10. (Col. 50 anos do Sacrosanctum Conciliium).
2TAYLOR, Justin. As origens do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2010.
3Lumen Gentium – LG 11.
4CAPPELLI. Pedro. O cisma silencioso: da casta clerical à profecia da fé. São Paulo: Paulus, 2010.
Danilo César é presbítero do clero da Arquidiocese de Belo Horizonte. Formado em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo, em Roma. Professor de liturgia na faculdade de teologia da PUC Minas e membro da Comissão Episcopal para a Pastoral Litúrgica da CNBB e do Regional Leste II. Membro da Rede Celebra de Animação Litúrgica e Pároco da Paróquia de Santana, em Belo Horizonte.